O sofrimento e a
morte de Jesus constituem, juntamente com a ressurreição, o centro da fé
cristã. Na Idade Média, a contemplação de Jesus em seu sofrimento físico e
psíquico constituía uma das principais fontes de fortalecimento da fé. Naquela
época a vida humana estava exposta, em grau bem maior do que hoje, a muitos
perigos, desde catástrofes naturais até a peste bubônica e a violência das
guerras. Em seu sofrimento, os cristãos identificavam-se facilmente com Jesus,
o sofredor por excelência, impiedosamente crucificado e morto, e nele
encontravam consolo e força para enfrentar as adversidades da vida.
Na época de Lutero
as práticas de contemplação do sofrimento de Cristo haviam se multiplicado,
tornando-se, muitas vezes, bastante superficiais. Em vista disso, Lutero
redigiu um sermão, em 1519, sobre a paixão de Cristo, mostrando a maneira
adequada de contemplar o sofrimento de Cristo. O sermão foi amplamente
divulgado e tornou-se muito popular.
Algumas pessoas meditam o sofrimento de Cristo
indignando-se contra os judeus e censurando Judas pelo que fez. Isto com
certeza não significa meditar o sofrimento de Cristo, e sim a maldade de Judas
e dos demais. Outras pessoas têm compaixão de Cristo, lamentando-o e
pranteando-o como um homem inocente. Foi o que fizeram as mulheres que, de
Jerusalém, seguiram atrás de Cristo batendo no peito e lamentando e foram
repreendidas por ele no sentido de que não chorassem por ele, mas por si mesmas
e por seus filhos (Lucas 23.27-28).
O sofrimento de Cristo é meditado autenticamente por
aquelas pessoas que se assustam por causa do severo rigor de Deus para com o
pecado. Deus feriu o seu Filho por causa do pecado do ser humano. O que será
dos pecadores, se até o querido Filho é ferido assim? Se pensarmos que é o
próprio Filho de Deus quem sofre, ninguém deixará de ficar assustado.
Na verdade, quem tortura a Cristo dessa forma somos nós
mesmos, pois os nossos pecados são responsáveis por seu sofrimento. Foi o que Pedro
disse às pessoas que o ouviam: “Vocês o crucificaram” (At 2.37). Por isso, ao
vermos os pregos atravessarem as mãos de Cristo, podemos ter certeza de que é
obra nossa; ao vermos a coroa de espinhos, podemos ver que são os nossos maus
pensamentos, etc. Quando um espinho fere a Cristo, seria justo que nos ferissem
mais de cem mil espinhos; quando um prego atravessa as mãos ou os pés de
Cristo, nós é que deveríamos sofrer com cem pregos.
Todo o proveito do sofrimento de Cristo depende de nós
chegarmos ao conhecimento de nós mesmos, nos assustarmos conosco e ficarmos
quebrantados. Pois nós somos aquele que, através de seu pecado, estrangulou e
crucificou o Filho de Deus. Se não chegarmos a isso, o sofrimento de Cristo
ainda não nos trouxe o devido proveito.
Nós precisamos pedir a Deus que abrande o nosso coração e
permita que meditemos o sofrimento de Cristo de modo frutífero, a fim de que
sejamos transformados em nosso ser. Pois nem é possível que o sofrimento de
Cristo seja meditado com profundidade por nós mesmos, a menos que Deus o
derrame em nosso coração.
Quando nós nos conscientizamos de nossos pecados e ficamos
profundamente assustados conosco mesmos precisamos cuidar para que os pecados
não fiquem desse jeito em nossa consciência. É preciso derramá-los novamente
sobre Cristo. Tiremos o nosso pecado de cima de nós e o atiremos para cima de
Cristo crendo firmemente que suas chagas e sofrimentos são nossos pecados e que
ele os carrega e paga por eles. Quanto mais nossa consciência nos acusar, tanto
mais devemos confiar nessa verdade. Cristo ressuscitou para nos tornar justos e
livres de todos os pecados. Esta é a contemplação do grande amor de Cristo por
nós. Amor este que o obriga a carregar o fardo tão pesado de nossa consciência
e nosso pecado.
Quando, enfim, nosso coração estiver firmado em Cristo e
tivermos nos tornado inimigos dos pecados – por amor e não por medo do castigo
– então o sofrimento de Cristo será um exemplo para toda a nossa vida.
Quando formos incomodados por sofrimentos ou por uma
doença, reflitamos como isso é pequeno em comparação com a coroa de espinhos e
os pregos de Cristo.
Quando tivermos que fazer ou deixar de fazer algo que nos
contraria, pensemos como Cristo, amarrado e preso, foi levado de um lado para
outro.
Se formos atribulados pelo orgulho, reparemos o quanto
nosso Senhor é debochado e desprezado junto aos malfeitores.
Se ódio, inveja ou sentimento de vingança nos atribularem,
pensemos em quantas lágrimas Cristo orou por nós e por todos os seus inimigos,
quando seria justo que ele se vingasse.
Se tristeza ou outras adversidades nos afligirem,
fortalecemos o nosso coração e digamos: “ora, por que eu também não poderia
passar por uma pequena tristeza, já que, no Getsêmani, meu Senhor suou sangue,
de tanto medo e tristeza”?
Em Cristo podemos encontrar força e alívio em todas as
situações. Que Deus nos abençoe para que possamos trazer diariamente a vida e o
nome de Cristo para dentro de nossa vida.
Resumido e adaptado de Um
Sermão sobre a Contemplação do Santo Sofrimento de Cristo. In Obras Selecionadas. v. 1. Porto Alegre:
Concórdia; São Leopoldo: Sinodal, 1987, p. 249-256.
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